sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Diatomáceas e a morte por afogamento


Para investigadores, determinar a morte por afogamento pode ser um desafio. Quando um corpo é encontrado na água e todas as outras causas de morte são eliminadas, o afogamento aparece como a lógica conclusão. Em geral, definir se a vítima foi afogada ou morreu antes de ser depositada na água depende de dedução lógica. A ausência de evidências diretamente observáveis em um cadáver, que sugiram afogamento, torna necessária a confirmação através de testes bioquímicos especializados.

A ciência que estuda as águas interiores (lagos, lagoas, represas, etc) aplicada à investigação criminal é limnologia forense, e o teste utilizado para confirmar o afogamento é o teste das diatomáceas.

Diatomáceas são fitoplânctons, algas unicelulares encontradas praticamente em todas as águas. Aquelas encontradas em ambientes naturais apresentam muito mais espécies do que aquelas encontradas ambientes artificiais. Diferentes corpos de água vão apresentar diferentes variedades de diatomáceas, de acordo com as condições encontradas neles. Uma vítima de afogamento apresentará diatomáceas em diversos tecidos do corpo. A presença de diatomáceas características de uma determinada região confirmará o afogamento e apontará o local do mesmo, através de uma comparação entre as encontradas na vítima e as encontradas no local do crime – não necessariamente o local onde o corpo foi encontrado.

O mecanismo de morte por afogamento é anoxia cerebral irreversiva decorrente de longo período de hipóxia. (Di Maio & Di Maio, 1993). A luta pela sobrevivência em casos de afogamento esgota grandemente os níveis de ATP do organismo, acelerando o inicio do Rigor mortis (Di Maio & Di Maio, 1993; Schwar, 1972). Em um corpo encontrado na água podem aparecer ferimentos primários, como produzidos por facas, balas, etc e ferimentos secundários, produzidos por peixes, pedras, etc.

O processo de putrefação de um corpo na água é aproximadamente igual à metade do mesmo processo em terra. A decomposição está ligada diretamente ao contato com oxigênio. A regra segue da seguinte forma: uma semana em ambiente aberto equivale a duas semanas na água, que equivalem a oito semanas sob o solo. Em água parada o processo de decomposição é mais rápido devido ao alto índice de bactérias. Num cadáver encontrado submerso o Livor mortis é caracterizado pelo clareamento da pele e realce da cor dos órgãos internos. Devido à baixa temperatura, o sangue se concentra nos locais vitais, os órgãos internos.

O tecido mais indicado para o teste de diatomáceas é a medula óssea do fêmur. Para que as diatomáceas cheguem na medula óssea femoral, local sujeito a analise e comparação, é preciso que haja aspiração de água para transportá-los. O processo de transporte ocorre devido a resistência da parede silicosa das diatomáceas, chamada frústula, ao muco do aparelho respiratório, sendo capaz de ser transportada do sistema circulatório para os órgãos internos.(pollahen et. al. 1997).

Ossos são sistemas fechados, onde o sangue precisa passar para levar as diatomáceas, o que sugere que sua presença é antemortem, diferente dos pulmões, por exemplo, que podem conter diatomáceas que entraram passivamente quando o corpo não foi afogado, mas depositado na água.

As diatomáceas encontradas em outros tecidos apresentam tamanho maior, e por isso podem fornecer confirmações adicionais em relação àquelas encontradas nos ossos. O uso da medula do esterno tem sido sugerido por apresentar, em alguns casos, um maior volume de diatomáceas individuais. Além disso, uma vez que o esterno é removido na autopsia, seu uso evita a mutilação do cadáver.

O teste de diatomáceas pode ajudar a definir a causa da morte de um corpo encontrado em terra, mesmo que longe da água. Comparações das diatomáceas do corpo com as da região podem levar até ao local de afogamento. Seu uso apresenta vantagens de duas maneiras: a confirmação do diagnóstico de afogamento e a detecção de afogamento em casos de homicídio com extensa decomposição ou extensas queimaduras postmortem do corpo.

A presença de diatomáceas na medula óssea é a prova de que o indivíduo estava vivo quando foi submerso. Isso significa que a causa de morte foi, pelo menos em parte, devido ao afogamento. Sua ausência não significa descartar a possibilidade de afogamento. Vítimas com problemas cardíacos ou alguma outra fraqueza do sistema circulatório ou pulmonar que produza hiperventilação ou tenha um espasmo na laringe quando submersas podem morrer mais depressa. Isso leva a uma diminuição do ar inalado e um tempo menor em que o sistema circulatório pode transportar as diatomáceas para outros órgãos.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Análise kleiniana do filme Tropa de Elite*

Sendo uma criação da mente humana, toda obra de arte é permeada pela projeção de processos mentais inconscientes, de modo que permite diversas interpretações. Nesse sentido, o filme Tropa de Elite pode ser visto como apresentando um modelo da mente primitiva.

Uma das características da mente primitiva é se defender, com defesas onipotentes e extremas, como, por exemplo, a cisão e a negação da realidade, das intensas ameaças de aniquilamento, que se intensificam com o aumento da pulsão de morte e a ausência de um ambiente acolhedor. No filme, esse processo é apresentado com a matança e tortura que os policiais fazem nas favelas. Sua forma de combater o narcotráfico é por meio da execução de todos os criminosos, que por sua vez também tem intenção de executar a polícia na medida do possível. Tal medida social, comum desde os tempos primitivos, como por exemplo, a Idade Média, sugere um grupo menos desenvolvido, no sentido de ver na morte de uns a única solução para a proteção da vida de outros. Assim, hereges e traficantes são condenados à perseguição e execução, por serem ameaças perigosíssimas.

Os policiais do BOPE se assemelham muito à imagem de Tânato[s], personagem mitológico que tem coração de ferro, faca na mão e é o mensageiro da morte. O Caveira, policial do BOPE, aprende hinos que exaltam a sua capacidade de espalhar "o medo e o terror", sua fama de "deixar corpo no chão".

Durante o treinamento de seleção de novos oficiais, o que ocorre é uma seleção de indivíduos com características psíquicas e tipos de defesas específicas de uma fase do desenvolvimento, onde o superego é muito primitivo e o ego, para se defender das intensas ameaças da pulsão de morte, cinde a realidade em objetos bons e maus, projetando os últimos para fora, mantendo para si apenas o mundo bom, o que faz com que o indivíduo suporte o peso da realidade.

O BOPE é formado por homens que funcionam de acordo com a posição esquizoparanóide, nome dado por Melanie Klein a esse período mais primitivo do desenvolvimento do ego. Para se valer dessa forma de combater os objetos ameaçadores, espalhando a morte, o sujeito encontra na cisão sua defesa. Capitão Nascimento vive um mundo cindido, onde os objetos bons estão separados dos maus. O usuário de drogas, o traficante, o policial corrupto, só podem ser maus. A esposa, os filhos, o BOPE, só podem ser bons. Não há a integração de aspectos bons e maus em um mesmo indivíduo, o que seria característico de uma posição depressiva, nome dado por Klein à fase do desenvolvimento onde o ego já está mais integrado.

O policial militar escolhe "ou se corrompe, ou se omite, ou vai pra guerra". Ao escolher ir para a guerra, Capitão Nascimento também escolhe não ver o ser humano em cada corpo que derruba e, assim, dá vazão a seu sadismo na tortura. A cisão fornece a capacidade de não ter contato com a realidade total.

Quando Capitão Nascimento toma conhecimento da morte do Fogueteiro, a criança do movimento, e sente remorso, percebe-se a cisão perdendo efeito, "remorso é um sentimento muito perigoso para um policial". Ao subir o morro para resgatar o cadáver, fica evidente que começa a se inserir na posição depressiva. Resgatar o corpo pode ser simbolicamente associado a um de ato de reparação.

Seus ataques de ansiedade são outros sinais de dificuldade em lidar com a realidade não mais cindida, mas em processo de integração; seus conflitos internos e externos são inevitáveis. Com a expectativa do nascimento de seu filho sua pulsão de vida pressiona o ego a investir no futuro, na esperança e no amor. Não pode mais alimentar-se apenas da pulsão de morte e subir o
morro.

A partir desse momento Capitão Nascimento inicia a passagem para a posição Depressiva, onde há o medo de que seus próprios conteúdos possam ferir e espantar os objetos bons, e o sentimento predominante é a culpa. Algum tempo depois do seu ataque de raiva contra Rosane, ele entra em casa e não encontra sua esposa.

Do outro lado temos André Matias. Matias começa o filme mais integrado, mas com dificuldade de fazer escolhas e abrir mão de algumas amizades em detrimento da profissão. Ao tolerar o usuário de drogas em troca de um relacionamento com Maria, Matias demonstra um superego maleável. Convive sabendo que está errado, tanto em subir o morro como civil para visitar a ONG como ao não enquadrar os usuários que encontra. Seu investimento principal não é a polícia, a princípio. Matias se preocupa com os estudos e com Maria.

Mas um policial do BOPE não funciona assim, e não foi assim que Matias entrou no BOPE. Matias é transferido para o cargo de cozinheiro no batalhão policial após dar um golpe no Capitão Oliveira. Uma vez salvo pelos "Caveiras" no morro, ele decide tentar ingressar no batalhão e sair do serviço na cozinha.

Uma consequência de sua passagem pelo morro em meio a tiros é o fato de Maria descobrir sua identidade de policial. Ela o acusa de mentiroso, acabando com seu relacionamento. Já no BOPE, Neto, seu melhor amigo, é morto por traficantes. Neto era destaque nas operações pelo número de cadáveres que fez. Capitão Nascimento se alimenta da dor e da revolta de Matias em relação à morte de Neto ao entregar a escopeta no fim do filme. A cisão se faz presente.

Parte do sucesso do filme pode estar em apresentar uma figura que resolve seus próprios problemas. E seus problemas são nossos problemas. Capitão Nascimento tenta acabar com o problema do narcotráfico depositando suas esperanças no BOPE. E vai até o fim para garantir que sua expectativa tenha condições de ser cumprida. Capitão Nascimento é a figura do pai protetor e punitivo que o Estado não consegue exercer. Ele realiza um desejo que todos temos ou tivemos em algum momento, que é o de ver o sofrimento e a morte daqueles que tememos e odiamos. O atual momento de guerra entre polícia e narcotráficantes facilmente induz a cisão mencionada.

Vemos inocentes caindo por balas de bandidos e policiais, não vemos o remorso ou culpa dos que erram, nem o desespero dos que fogem. Ao ver e ouvir apenas o lado trágico, triste e decadente dos centros urbanos, alimentamos um ódio que só pode ser diminuido com sua externalização contra aqueles que julgamos culpados. Tudo isso porque estamos desamparados, paranóicos com a violência, em busca de algum salvador que exerça essa justiça onipotente sem remorso, tal como gostariamos muitas vezes. E uma vez que nossa realidade esta cindida para procurar pelo objeto bom e fugir do mau, não temos dificuldade em identificar Capitão Nascimento como uma figura desejável.


*Agradeço ao caro colega Guilherme pela ajuda que forneceu na construção do texto.