sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças: uma analise psicanalitica


          O filme aborda o processo de luto e melancolia envolvido na perda do objeto de desejo, objeto de investimento libidinal que foi negado. Enquanto o luto consiste num processo onde há um começo, meio e fim, na melancolia o sujeito repete o processo de luto indefinidamente. No luto o objeto de desejo foi perdido, na melancolia o próprio objeto é confundido com o ego, portanto sua perda consiste num ferimento edípico narcísico, como a perda de uma parte de si mesmo, e uma grande revolta em vista da culpa e da incapacidade de evitar o acontecimento, com origem no superego.

Em toda identificação há ambivalência. Se podemos odiar tudo aquilo que amamos, é o ódio o sentimento alimentado quando o superego constata a perda de uma parte do ego, como se algo no ego fosse responsável por essa perda, e a auto-depreciação fosse necessária para expiar a culpa, ou uma maneira de deslocar a raiva pelo objeto perdido. A parte do ego perdida é a parte identificada com o objeto. Uma diferença central que Freud aponta entre luto e melancolia é a ausência de “perturbação na auto-estima” no luto. Na melancolia o sujeito se apresenta como “desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível, ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível.”

Estudando o paciente melancólico Freud nota que “as auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado que foram deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente.” A ambivalência afetiva conseqüente da perda se manifesta também no interesse do melancólico de fazer o objeto perdido constatar seu estado de depressão, impondo uma culpa e desfrutando sadicamente do sofrimento do outro, quando a pessoa amada/perdida se encontra acessível ao melancólico. “É exclusivamente esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante e tão perigosa. [...] Nas duas situações opostas, de paixão intensa e de suicídio, o ego é dominado pelo objeto, embora de maneiras totalmente diferentes.”

            Freud escreve que no luto o mundo ficou pobre e vazio, com a ausência do objeto. Mas se na melancolia o objeto identificado, internalizado, se torna parte do ego, então é o próprio ego que se decompõe em vazio e tristeza. O sujeito se torna dependente do objeto, e o objeto deve corresponder às expectativas do sujeito, semelhante ao romantismo do século XVI e XVII, como Shakespeare em Romeo e Julieta, onde a morte é melhor do que a vida sem o objeto de desejo.

            Tudo aquilo que amamos pode deixar de existir, tudo aquilo que desejamos pode não se realizar. No melancólico o luto é internalizado, ele deixa de enlutar sobre o objeto para enlutar a si mesmo e as suas perdas. Concebe que se o prazer e o amor são efêmeros, então estão sujeitos a sofrerem, a perdê-los mais uma vez. Se, ao contrario, concebe que são eternos, e os perdeu, conclui que nunca mais poderá conseguir de novo.

Para Freud, o luto é aceitar a perda e a efemeridade da vida em si. Por não aceitar a efemeridade, o melancólico não pode concretizar o luto do objeto perdido. Por não fazer o luto do objeto perdido, não pode se deixar amar, porque amar é sempre amar algo que pode ser perdido, algo transcendente.

A vitória da pulsão de morte sobre a de vida é característica do melancólico. O investimento na vida é abandonado; o sujeito entra num processo constante de autopunição e a única solução que encontra é a aniquilação do ego ou objeto internalizado. No caso do filme, Clemetine opta pela segunda opção. E Joel o faz por vingança.

            A capacidade de estabelecer vínculos depende da capacidade de concretizar o luto, simplesmente porque amar implica em lidar com perdas. Estabelecer vínculos sem o risco da perda é estabelecer um falso vinculo, um vinculo incompleto. E Lacuna oferece essa possibilidade. Sempre que uma nova relação é estabelecida, a possibilidade de negar sua perda esta presente.

            Uma vez que o Ego é o depositário de catexias abandonadas, suplantado por um conjunto de traços mnêmicos com atividade inconsciente e representações pré-conscientes, erradicar da memória traços mnêmicos seria infligir uma alteração descomunal ao Ego. Os traços mnêmicos e as representações formadas entram em contato uns com os outros através de uma rede associativa imensurável, que justifica o método de associação livre e a interpretação dos sonhos. A consciência do Ego seria prejudicada profundamente, uma vez que boa parte de seus conteúdos pré-conscientes ficariam dissociados, o e sujeito entraria num estado confusional inexplicável, uma vez que não tem consciência do dano que ele mesmo produziu na sua estrutura mental.

“Uma das características principais do Ego é estabelecer a conexão entre a percepção sensorial e a ação muscular, ou seja, comandar o movimento voluntário. Ele tem a tarefa de auto-preservação. Com referência aos acontecimentos externos, o Ego desempenha sua função dando conta dos estímulos externos, armazenando experiências sobre eles na memória, evitando o excesso de estímulos internos (mediante a fuga), lidando com estímulos moderados (através da adaptação) e aprendendo, através da atividade, a produzir modificações convenientes no mundo externo em seu próprio benefício."  (1923)

 Joel, ao passar pelo processo que apaga sua memória, acaba alterando e descaracterizando o seu Eu, o conjunto de memórias (percepções) que tinha.  A partir do momento que não pode mais se lembrar de Clementine, Joel esquece também todas as sensações, percepções e representações verbais que estavam ligadas a ela. Joel, por mais que tente reagir quando se arrepende, os apaga de vez do consciente, deixando-os supostamente apenas na esfera do inconsciente. Como a relação com o sistema perceptivo está abalada, Joel sente algo estranho quando vê que há folhas arrancadas de seu diário, mas não se lembra de tê-las arrancado. Essa descaracterização do Eu também pode ser apontada quando, logo no início do filme, Joel desiste num impulso de ir ao trabalho e pega um trem para Montauk. Neste caso seria o impulso do Id dominando um Ego alterado.

Clementine é a melancólica que nega a perda, não se liga com as memórias felizes que seu namoro proporcionou, e destrói o passado para estabelecer um novo presente. Ela apresenta uma personalidade claramente impulsiva, evidenciada pela sua iniciativa em estabelecer diálogos, as mudanças constantes no visual, a maneira exaltada e apressada de se expressar, as reações que tem quando emocionada. Sua vontade de negar a perda, apoiando-se na tecnologia, exprime sua impulsividade. Seria ela incapaz de estabelecer vínculos duradouros e, portanto, estava fadada a afundar o relacionamento, e encontrou na Lacuna apenas uma forma de acelerar o processo de negação da perda ou sua relação foi sincera e a busca pelo serviço de Lacuna consistiria em uma defesa maníaca frente à dor da separação?

Do outro lado, Joel apresenta um aspecto tímido e retraído, que passa muito tempo pensando sobre as ações e pouco agindo. Podemos supor que a figura de Clementine substitui a mãe de Joel, devido ao papel que Clementine desempenha no sonho de Joel – propondo idéias e guiando o mesmo através do desmoronamento das memórias, sugerindo uma reativação da mãe acolhedoura. E quanto a solução que Joel encontra para salvar a memória de Clementine colocando-a junto com sua mãe? Podemos supor que da mesma forma que Joel aprendeu a se separar da mãe, e ainda assim nutrir um amor pela mesma – seja enquanto lembrança, seja enquanto objeto bom internalizado  – ao reviver sua situação edípica, Joel supera a dor da separação de Clementine assim como o fez com sua mãe. Um forte indicativo dessa atualização do amor pela mãe é demonstrado na fixação de Joel pela virilha de mulheres. Na lembrança que Joel coloca Clementine, ele observa sua mãe por debaixo de uma mesa, e ela esta de saia se debruçando sobre a mesa. Joel permanece observando, tímido, mas curioso, o que pode ver da mãe. Com Clementine ele manifesta essa “tara” por virilha em uma cena onde ela expõe, rapidamente, a virilha para provocá-lo.

Ao mesmo tempo em que Joel faz uma escolha anaclítica de objeto, isto é, orientado baseado nas figuras parentais, sua reação ao perder Clementine se aproxima daquela encontrada no sujeito que faz escolhas objetais narcísicas. Sua escolha amorosa em relação a Clementine pode ter sido com base narcisista, uma vez que transformou-a num ideal, o qual substituiu o investimento erótico, havendo uma forte fixação no objeto. Assim, pela identificação narcisista com o objeto, é ao narcisismo que o investimento libidinal retorna, não o direcionando ao objeto externo.

“Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal.” Freud -Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914).

Dessa maneira, Joel amava a si mesmo por meio de Clementine e, ao perdê-la, há um processo de despersonalização do personagem, observável por meio da fragmentação e perda inconsciente de si mesmo, de parte de seu Ego.

Essa vivência leva o personagem de Joel a entrar num estagio depressivo (melancólico ou não), no qual está preso à imagem do objeto. Quando constata a atitude de Clementine, tenta vingar-se do objeto mal apagando as memórias de seu consciente, gerando lacunas em sua esfera psíquica.

Contudo, na tentativa de elaborar o luto, realiza, por meio do desejo, o impedimento da destruição das lembranças de Clementine. Assim, permite a reconstituição do objeto desejado por meio de representações internalizadas.

Uma analise psicanalítica de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças estaria incompleta se não fossem dedicados alguns parágrafos para abordar aquilo que preenche a maior parte da obra: o sonho. (Não pretendo interpretar o sonho, mas apenas apontar as características da formação de sonhos que Freud postulou fazendo referencias ao filme, e, na medida do possível, propor um possível significado).

O sonho é, segundo Freud, a via para que o material inconsciente possa se manifestar, a realização de um desejo inconsciente. A construção do sonho possui algumas leis, regularidades, que Freud descreveu em sua grande obra de 1900, como a presença dos fatos diurnos recentes, a utilização de vivências infantis, figurabilidade, ausência de contradição, ausência da noção espaço-temporal, condensação e deslocamento.

Quando chega ao prédio em que mora, Joel encontra Frank, seu vizinho, que ao pegar suas cartas na caixa de correio, faz o seguinte comentário: “putz. Os únicos cartões de Dia dos Namorados que recebo são da minha mãe. Bem patético, não?”. Joel sobe para seu apartamento, toma um remédio e dorme. Em seu sonho, Joel aparece deitado na cama, e Frank se encontra ao lado, com as cartas na mão, dizendo quase a mesma frase (“só recebo cartões de Dia dos Namorados da minha mãe. Bem patético né?”). Antes de dizer tal frase, Frank pergunta a Joel como este está, e ele reponde sem mexer os lábios.

Nesse mesmo trecho, tem-se um exemplo da ausência de noção espaço-temporal e também de condensação. Joel se encontra deitado em sua cama e Frank ao lado, com as cartas nas mãos, em uma imagem distorcida, que pode ser tanto o próprio apartamento de Joel, como também a caixa de correios do prédio (onde se encontraram anteriormente).

            No momento em que Frank lembra a Joel que falta apenas um dia para o “dia dos namorados”, a cena onírica muda, para quando Joel conversava com seus amigos e dizia que faltavam três dias para o “dia dos namorados”. Dessa forma, observa-se nesse trecho a ligação entre representações.

Em seu sonho, Joel se lembra de uma frase que Clementine disse: “mas eu sou só uma garota ferrada procurando pela minha paz de espírito.”. Provavelmente era algo que ela sempre costumava dizer, já que o próprio Joel diz se lembrar desse discurso e, depois do processo em que “apagou” Clementine de sua mente, e eles se reencontram, Clementine repete a mesma frase.

            Quando Joel conta a seus amigos que Clementine não se lembrava mais dele, se recorda de ir ao trabalho dela e encontrar ela com outro homem. Quando este homem se aproxima de Clementine, ela diz “Patrick! Meu menininho.”. Mais adiante no sonho, Joel vê um homem abaixado, pegando algumas coisas no chão, e pergunta ao Dr. Howard quem seria ele. O Dr. Howard então responde com a mesma frase de Clementine: “este é o Patrick, meu menininho”.

            Os sonhos não são montados apenas a partir de fatos que já aconteceram e de conteúdos inconscientes. Quando Patrick está no quarto de Joel e liga para Clementine, a conversa deles ao telefone influencia o sonho de Joel. Ele reconhece a voz de Patrick, e se lembra de quando o viu com Clementine. No momento em que Patrick chama Clementine de Tangerina, Joel se lembra do dia em que Clementine pintou o cabelo com a cor laranja, o dia em que lhe deu o apelido de Tangerina.

            Observa-se a condensação também na cena em que Joel está na sala de seu apartamento com Clementine, onde começa a chover. Ele se lembra de quando era criança e chovia. Os dois momentos estão condensados no sonho: a sala de seu apartamento, Clementine e a mesa, e a chuva, a música, o telhado de sua casa. Ele se esconde embaixo de sua mesa, lembrando de quando se escondia embaixo do telhado quando criança. Logo em seguida, se lembra de quando criança se esconder na cozinha embaixo da mesa. Nessa condensação observa-se também a ausência da noção espaço-temporal.

            Há um momento em que Joel aparece com Clementine dentro da pia da cozinha, e sua mãe está lavando a louça. Ela canta a música de Dom Pixote, e provavelmente cantava-a enquanto fazia as tarefas domésticas, mostrando assim mais uma ligação entre sua mãe e Clementine. Além disso, apesar de parecer ser a mãe quem canta, a voz na verdade parece ser a de Clementine. Vê-se então mais um exemplo de condensação. O fato de estar dentro da pia cheia d’água, pode mostrar o desejo de estar perto de sua mãe, querer que ela o toque, o lave, talvez até uma condensação com o momento do banho, onde é comum as mães colocarem os bebês em banheiras e lavá-los.

            Em uma cena, Joel tenta esconder Clementine em sua humilhação. Vai então com ela até seu quarto quando era adolescente e sua mãe o vê se masturbando. Logo em seguida, ele está na cama, com Clementine, na praia de Montauk. A praia deveria ter uma significação muito importante para Joel, pois foi onde conheceu Clementine. Além disso, a idéia sobre masturbação estava ligada então com Clementine, que é a pessoa com que realizava seus desejos sexuais.

            O Dr. Howard pede para Joel ir para sua casa e pegar todas as coisas que o faça lembrar de Clementine. Dessa maneira, o Dr. Howard acredita que saberá todas as idéias que se ligam à representação de Clementine para Joel, pretendendo assim criar um mapa cerebral de sua memória. No entanto, as idéias possuíam outras ligações, inconscientes, e por isso Joel não pôde dizê-las ao Dr. Howard. São nessas idéias inconscientes que Clementine fica “escondida”, ou seja, Clementine não é apagada do inconsciente de Joel.

O filme expõe brevemente o fim do namoro de Joel e Clementine, com uma curta briga após Clementine voltar para casa de madrugada.  Joel fica irritado quando Clementine volta para casa depois de uma noite fora, não concebe a parceira se divertindo sem ele. Esta, por sua vez, aparenta fazê-lo como uma forma de se desligar desse objeto que a consumiu tanto e que está sujeito a perda. Antes de sofrer com a surpresa da rejeição, ela prefere tomar parte no fim, como uma ultima forma de obter o controle sobre a relação.

“Quando acontece uma pessoa ter de abandonar um objeto sexual, muito amiúde se segue uma alteração de seu ego que só pode ser descrita como instalação do objeto dentro do ego, tal como ocorre na melancolia; a natureza exata dessa substituição ainda nos é desconhecida. Pode ser que, através dessa introjeção, que constitui uma espécie de regressão ao mecanismo da fase oral, o ego torne mais fácil ao objeto ser abandonado ou torne possível esse processo. Pode ser que essa identificação seja a única condição em que o id pode abandonar os seus objetos. De qualquer maneira, o processo, especialmente nas fases primitivas de desenvolvimento, é muito freqüente, e torna possível supor que o caráter do ego é um precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas escolhas de objeto. Naturalmente, deve-se admitir, desde o início, que existem diversos graus de capacidade de resistência, os quais decidem até que ponto o caráter de uma pessoa desvia ou aceita as influências da história de suas escolhas objetais eróticas.” (Freud, 1923).

Cabe apontar, teria Joel reconhecido, a sua maneira, que a aniquilação do objeto introjetado, suas memórias, carregaria junto a aniquilação daquilo que o faz o que é? Teria, no ultimo segundo, a pulsão de vida vencida a de morte? O filme expõe por diversas vezes o luto de Joel, seu conflito com as lembranças, seus momentos de tristeza e solidão. Durante seu sonho, teria ele elaborado o luto, escolhendo as lembranças? No final do filme é ele quem diz “tudo bem” quando o casal descobre a história que tiveram a respeito de lembranças apagadas. É ele quem aceita manter a relação, mesmo consciente da dor que uma futura separação traria. Em outras palavras, como Melanie Klein descreveu em sua posição depressiva, quando ele se nega a apagar Clementine de sua vida, ele demonstra a introjeção dos aspectos bons do objeto, livre de ameaças externas, para suportar a separação. Quando se apaga a memória, não há objeto bom introjetado – conscientemente, no mínimo – e toda futura perda será marcada pela ausência dessa experiência de perda anterior, que para Melanie Klein começa no desmame. Joel preserva seu objeto bom, suas lembranças valiosas. Clementine não dispõe da mesma capacidade. Ela guarda apenas as lembranças dolorosas da relação, e por isso precisa eliminá-las. Não preserva o lado bom do objeto, é ameaçada constantemente pelo ruim. A lembrança de Joel é dolorosa, precisa ser destruída, a culpa pelo desfecho da relação é negada, assim como a dor da perda.

            A elaboração do luto, por fim, consiste não em apagar aquilo que perdemos, e sim se lembrar das boas qualidades daquilo que se foi. Não consiste em esquecer, mas em lembrar bem (Carel, 2007). Introjetar o objeto bom pode ser ilustrado como o apego a boas lembranças do objeto, preferir os melhores momentos aos piores quando se remeter à pessoa perdida. Reconhecer o valor (positivo) do passado e se dirigir ao futuro, levando as boas experiências como referencia para as futuras.

E no que consiste a terapia psicanalítica senão numa tentativa de estabelecer novas relações com o passado, proporcionando um ego fortalecido com identificações positivas? E em que medida o serviço que Lacuna oferece não está próximo da “solução” vendida pelo slogan farmacêutico de psicotrópicos, que suprimem o desprazer sem elaborar a origem do do sofrimento? Lacuna e Prozac são mercadorias oferecidas que proporcionam ao sujeito se distanciar da sua própria influencia no processo de adoecimento. Uma forma socialmente maníaca de negação. Que sujeitos estamos construindo quando a experiência, a responsabilidade, a culpa, são camuflados com a alteração de neurotransmissores?

            O trabalho de Michel Gondry não é apenas um belo romance com uma pitada de ficção, mas uma crítica ao hedonismo que a modernidade exalta, e um pedido para o público reavaliar a forma como se pensa a dor da perda.

Referências:

FREUD, S. (1923). O Ego e o Id. in Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago

FREUD, S. (1917). Luto e Melancolia. in Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago

FREUD, S. (1914). Sobre o Narcisismo: Uma Introdução in Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago

CAREL, H. (2007).The return of the erased: Memory and forgetfulness in Eternal sunshine of the spotless mind (2004), International Journal of Psychoanalysis, August 1, 2007

http://virtualpsy.locaweb.com.br/index.php?sec=53&art=159 acessado dia 23 de Junho de 2009

sábado, 13 de junho de 2009

Sartre e seu existencialismo

                Um curto relato sobre o existencialismo não é possível sem falar, com a mesma dedicação, de Jean-Paul Sartre. O francês, talvez o mais famoso do último século, nasceu numa família burguesa em 21 de junho de 1905, em Paris. Seu pai morreu antes de Sartre nascer, e este afirma que, devido a ausência da figura paterna, cresceu livre de um superego formal burguês que teria impedido seu desenvolvimento intelectual e filosófico ("Se tivesse vivido, meu pai teria desmoronado sobre mim e me esmagado"[i]). Formou-se em filosofia, freqüentando bares e cafés acompanhado de ninguém menos que Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Simone Weil e Simone de Beauvoir.

                Mudou-se para Berlim, em 1933 para estudar a filosofia que cunhou de existencialismo. Tomou o termo emprestado do filosofo Kierkgaard, que sustentava o “individuo existente” a única base para uma filosofia significativa. Quando escreve “O existencialismo é um humanismo” entende a liberdade individual em relação com a responsabilidade social e ao engajamento político. Simpatizante do marxismo, Sartre alega que "o marxismo reabsorveu o homem na idéia, e o existencialismo o procura por toda parte onde ele esteja - no trabalho, em casa, na rua"[ii] Rejeita o premio Nobel de Literatura em 1964, dizendo que "o escritor não se deve deixar transformar pelas instituições"[iii]

No “Club Maintenant”, em 1945, Sartre explica um dos princípios fundamentais do seu existencialismo, “a existência precede a essência”. A sentença esta inserida na seguinte fala

"... se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significa então que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se fizer."

Ao negar uma essência anterior, nega também uma metafísica que possa explicar o homem e sua realidade. Rejeita todo o platonismo corrente na filosofia e aponta para a materialidade da existência, a materialidade dos fenômenos. A única certeza que pode ser afirmada de inicio é a certeza da existência. Nenhuma natureza humana entra em questão, e toda compreensão humana é baseada na realidade da experiência do sujeito – que por sua vez vai compor a essência do homem. Caracteriza subjetividade como aquilo que o homem faz de si mesmo.

Se a essência é aquilo que próprio homem constrói para si, então tal homem é responsável pelo que é, e pelo que faz. A ênfase na responsabilidade humana é a segunda peculiaridade do existencialismo. O homem é responsável pela própria existência e pelas conseqüências que sua existência, seus atos, produz no mundo e nos outros. A relação entre o existencialismo sartriano e a política é evidente e inevitável.

                “O homem está condenado a ser livre”. O existencialismo de Sartre aborda a liberdade como uma pena que incide sobre todo sujeito. Cada um é livre para escolher seu projeto de vida, e cada projeto implica em ações que refletem na humanidade. Dessa forma todo homem é responsável pelo caminhar da humanidade. Se a humanidade está em declínio moral ou social, todo individuo é responsável pela condição. Ao escolher não se engajar para modificar o quadro e depositar esperanças em figuras de autoridade, o sujeito está exercendo sua liberdade de escolha, mas tentando fugir da culpa através da má-fé, quando justifica a situação depositando a responsabilidade em outra pessoa.

A má-fé consiste numa defesa, numa explicação, que o sujeito atribui a si próprio para explicar a “razão” de seus atos, de sua vida. Toda explicação que tente justificar a situação negando a responsabilidade pela própria escolha é uma atitude de má-fé. É uma incapacidade para arcar com as próprias responsabilidades. Para Sartre, é necessário que o homem abandone esse habito que o afasta, falsamente, das conseqüências de suas escolhas, e passe a assumir as responsabilidades que suas escolhas acarretam. Ao abandonar a má-fé o homem deixa de se enganar, e passa a conviver com a angústia que sua liberdade produz, devido às conseqüências de seus atos. A liberdade individual implica na angustia existencial. Por isso Sartre caracteriza a liberdade como uma condenação ao homem. Não existe culpa quando não somos responsáveis pelos nossos atos. Mas também não existe liberdade.

Segundo o comentário de Artur Polônio, “se a vida não tem, à partida, um sentido determinado [...], não podemos evitar criar o sentido de nossa própria vida”. Assim, “a vida nos obriga a escolher entre vários possíveis [mas] nada nos obriga a escolher uma coisa ou outra”.

“O inferno são os outros”. Se o homem é responsável por aquilo que escolhe ser, e se cada um carrega um projeto de vida passível de ser concretizado, uma vez que é livre, então a única coisa que pode frustrar o desejo do sujeito são os projetos de vida dos outros. Todos são livres para se afirmar, ao mesmo tempo, todos são um obstáculo à afirmação do outro, e também o único meio de afirmação de tal projeto. O paradoxo existencial contribui para a angústia antes mencionada. A humanidade só sairá do buraco que cavou para si mesma quando todos reconhecerem sua influencia e arcarem com seus atos. Cada homem é responsável pela humanidade, ainda que muitos não acreditem. Solucionar o conflito entre as escolhas dos homens é o maior desafio para o sujeito existencial, ou seja, para aquele que é consciente da sua liberdade e suas conseqüências.

                Seguindo a fenomenologia, o existencialismo diferencia seres Em-si de seres Para-si. O ser Em-si é todo aquele objeto, ou coisa, dotado de uma função, uma essência, pré-determinada. São os objetos que construímos, os fenômenos naturais, tudo aquilo que podemos atribuir uma função e que não são dotados de autoconsciência. A consciência, ou o homem consciente, é um ser Para-si, pois é consciente de sua própria consciência, e, portanto, regente de sua própria existência. Entender o homem como um ser Para-si é entender o homem como uma figura única no mundo, capaz de construir e destruir através de seus atos. Toda ciência e filosofia que encare o homem como um ser Em-si retira do homem aquilo que o destaca dos outros seres: sua liberdade de construir e alterar sua essência.

Obras filosóficas: A Imaginação (1936) - A transcendência do Ego (1937) - O Imaginário (1940) - O Ser e o Nada (1943) - O existencialismo é um humanismo (1946) - Crítica da Razão Dialética (1960) - O idiota da família (1971) - Anotações para uma moral (1983)

Ensaios: São Genet, comediante e mártir (1952) - Questão de método (1960)

Romances e Contos: A náusea (1938) - O muro (1939) - A idade da razão (1945) – Sursis (1945) - Com a morte na alma (1949)

Teatro: As moscas (1943) - Entre quatro paredes (1945) - Mortos sem sepultura (1946) - A prostituta respeitosa (1946) - As mãos sujas(1948) - O diabo e o bom Deus (1951) - Os seqüestrados de Altona (1960)

Autobiográficas: As palavras (1964) - Diário de uma guerra estranha (1983)

Fontes:

 http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Paul_Sartre

http://pt.wikipedia.org/wiki/Existencialismo

http://www.cobra.pages.nom.br/ftm-existencial.html

http://www.geocities.com/Athens/olympus/7979/visao.htm

http://www.infoescola.com/filosofia/existencialismo/

http://existencialismo.sites.uol.com.br/sartre.htm

[i] STRATHERN, Paul. Sartre em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 9.

[ii] STRATHERN, Paul. Ibid., p. 64.

[iii] STRATHERN, Paul. Ibid., p.68

terça-feira, 9 de junho de 2009

Breves palavras sobre Albert Camus

Albert Camus (Mondovi, 7 de novembro de 1913 — Villeblevin, 4 de janeiro de 1960), nasceu na Argélia. O pai, frances, morreu na primeira Guerra Mundial (1914). A mãe, descendente de espanhóis, ele e o irmão mudaram-se para a cidade de Argel onde Camus foi incentivado por um professor do primário, que lhe consegue uma bolsa para estudos no Ginásio de Argel, a continuar estudando.

Quase abandona os estudos para ajudar com a renda na família. Nesse momento outro professor foi importante para que continuasse os estudos. Camus escreveu "O homem revoltado" dedicando este a seu professor Jean Grenier. Formou-se em filosofia na Universidade da Argelia.

Após conseguir seu doutorado e estar apto a lecionar Camus contraiu uma forte tuberculose, que o impediu não só de lecionar como de praticar o esporte que tanto amava. Era goleiro do time universitário de futebol. Esse momento foi crítico para o desenvolvimento de suas obras, devido à cotidiana possibilidade de morrer.

Mudou-se para a França em 1939 devido a problemas com autoridades da Argélia, que discriminavam os árabes do país. Camus já fazia parte do Partido Comunista, e na França, trabalhando como jornalista, muda-se de Paris para a região de Vichy onde se junta ao núcleo de resistência e trabalha como editor do jornal Combat. Durante esse período permanece longe da esposa e do filho, que não podiam sair da Argélia, nem o mesmo retornar, devido à guerra e invasão alemã.

Em 1942 conhece Sartre, e fazem uma amizade que dura até 1952. Sartre escreveu que gostaria de conhecer o autor de "O estrangeiro", Camus se apresenta como autor em uma festa onde ambos participavam. Quando Camus escreve "O homem revoltado" entra em desentendimento com Sartre e a amizade acaba. Sartre apoiava stalinismo. Camus considerava impensável qualquer relação com o stalinismo. Sartre via no marxismo a via para o desenvolvimento da humanidade. Camus abominava todos os revolucionários, e diz "A revolução consiste em amar um homem que ainda não existe." (http://filosofocamus.sites.uol.com.br/revolta.htm)

Camus morreu em 1960 num acidente de automóvel a caminho de Paris. Ele havia comprado o bilhete para ir de trem com um amigo poeta, mas por insistência de Michel, o motorista, foi de carro. Nos seus pertences havia o manuscrito de "O primeiro homem" contendo uma nota dizendo que o romance deveria terminar inacabado.

O período em que Camus viveu é marcado por uma série de eventos que abalaram a moral e as concepções sobre humanidade vigentes. A I Guerra Mundial, a depressão econômico-financeira de 1929, os expurgos dos processos de Moscou em 1936, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a defecção da democracia liberal-burguesa diante de Hitler em Munique (1938), os massacres e destruição de populações inteiras na II Guerra Mundial, culminando as suas experiências históricas com a destruição cientificamente controlada de Hiroshima e Nagasaki. Tais eventos colocam em cheque a crença de que a racionalidade humana, aliada ao conhecimento científico, pudesse ser suficiente para acabar com o sofrimento humano, que trariam progresso e conseqüentemente felicidade. Em virtude de tal idealismo, os escritores desse tempo têm comum a característica de acabar com a diferença entre o bem e o mal, a fidelidade aos fatos e a ênfase na responsabilidade humana. (http://existencialismo.sites.uol.com.br/camus.htm) 

Apesar de ser classificado como filósofo existencialista Camus alega que: "Não, não sou existencialista... e o único livro de idéias que eu publiquei” Le Mythe de Sisiph “(O Mito de Sísifo), foi contra os filósofos chamados existencialistas" (BARRETO, op. cit., p. 20-21.). Por desdenhar os deuses Sísifo foi condenado a passar a eternidade empurrando um rochedo até o pico de uma montanha, a pedra rolaria para o outro lado, e Sísifo mais uma vez a empurraria. A vitória atingida ao atingir o cume é logo atropelada pela consciência do próximo passo. A tragédia se exprime pelo conhecimento de seu esforço inútil.

Seu pensamento filosófico é firmado sobre dois pilares principais: o conceito do absurdo e o da revolta. A sua definição de "absurdo" diz respeito ao confronto da irracionalidade do mundo com o desejo de clareza e racionalidade que se encontra no homem. Mauro Gama, na introdução do livro "O Mito de Sísifo", define o "homem absurdo" como aquele que enfrenta lucidamente a condição - e a humanidade - absurda. E escreve que a humanidade

 

"pode até rolar a pedra até o alto da montanha, de onde ela desce de novo: desde que, nos intervalos, se mantenha e se renove a consciência do processo. A grande maioria, no entanto, já prefere naqueles momentos tão-somente rolar também de volta, ladeira abaixo. E já consegue chegar um pouco antes da pedra."

 

Logo do inicio do Mito de Sísifo Camus define o sentimento de absurdidade:

 

"Um mundo que se pode explicar mesmo com parcas razões é um mundo familiar. Ao contrário, porem, num universo subitamente privado de luzes ou ilusões, o homem se sente um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é destituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade."

 

[...]

 

"Mas o que é absurdo é o confronto entre esse irracional e esse desejo apaixonado de clareza cujo apelo ressoa no mais profundo do homem. O absurdo depende tanto do homem quanto do mundo."

 

Portanto, o titulo do livro é uma metáfora para a inutilidade do sofrimento humano, para a repetição da vida - a humanidade é apenas um numero incontável de homens que nascem e morrem -, para a solidão do homem moderno consciente da decadência da humanidade.

Quanto ao conceito da revolta, está ele vinculado, em última análise, à busca inconsciente de uma moral. Nas palavras de Camus, "ela é um aperfeiçoamento do homem, ainda que cego". A revolta é o sentimento do homem consciente do absurdo que diz "não" frente ao desespero que a falta de sentido da existência proporciona. Também a revolta consiste na libertação e questionamento das respostas fornecidas pelos homens a respeito do sofrimento e da salvação. É a renegação das utopias políticas que tentam fornecer uma nova sociedade melhor que a anterior, aonde mais uma vez o homem vai se deparar com o sentimento de absurdidade. É aceitar e contar unicamente consigo mesmo no mundo. Meursault, em “O Estrangeiro” contempla a vida e se revolta ao mesmo tempo enquanto espera sua execução. Ele não cede à crença do capelão em seus últimos momentos; é fiel, somente, a si mesmo. E à espera da morte relata os prazeres da vida.

A atenção que Camus dá para a busca da felicidade, prazeres na vida, presentes na consciência do absurdo, leva a uma inevitável comparação de Camus com Nietzsche. Para Nietzsche a pior forma de niilismo é aquela em que o homem nada faz para dar sentido à própria vida, e permanece preso ao sofrimento e infelicidade. O ideal ascético recebeu um livro inteiro para desmontá-lo (A Genealogia da Moral). Tanto Camus quanto Nietzsche encaram a vida como algo a ser exaltado, preenchida de prazeres. Do absurdo, do niilismo, da revolta, o homem parte, não para o desespero e tristeza, mas para uma dedicação à vida que lhe proporcione prazer. Seguindo a idéia do Eterno Retorno, o que faria se todo momento fosse repetido eternamente? Dedicaríamos nossas vidas para mudar o mundo, a sociedade e a cultura, ou faríamos de cada momento o mais prazeroso possível?

Bibliografia

Révolte dans les Asturies
O avesso e o direito
Núpcias
O estrangeiro
O mito de Sísifo
Le malentendu
Lettres à un ami allemand
Calígula
A peste
O estado de sítio
Actuelles I
O homem revoltado
Actuelles II
L'été
Requiem pour une nonne
A queda
O exílio e o reino
Actuelles II
Os discursos da Suécia (publicado juntamente com O avesso e o direito
Les possédés (Os possessos)
Resistance, Rebellion, and Death
A morte feliz
O primeiro homem

fontes:

http://existencialismo.sites.uol.com.br/camus.htm

http://filosofocamus.sites.uol.com.br/revolta.htm

http://pt.wikipedia.org/wiki/Albert_Camus

http://www.espacoacademico.com.br/086/86lima_raymundo.htm